“Ser ou estar.
Não, não é ser ou não ser, essa já existe, não confundir com a minha que acabei de inventar agora. Originalíssima.
Se eu sou, não estou, porque para que eu seja é preciso que eu não esteja.
Mas não esteja onde?
Muito boa a pergunta, não esteja onde.
Fora de mim, é lógico.
Para que eu seja assim inteira (essencial e essência) é preciso que não esteja em outro lugar senão em mim.
Não me desintegro na natureza, porque ela me toma e me devolve na íntegra: não há competição mas identificação dos elementos.
Apenas isso.
Na cidade me desintegro, porque na cidade eu não sou, eu estou: estou competindo e como dentro das regras do jogo (milhares de regras) preciso competir bem, tenho consequentemente de estar bem para competir o melhor possível.
Para competir o melhor possível acabo sacrificando o ser (próprio ou alheio, o que vem a dar no mesmo).
Ora, se sacrifico o ser para apenas estar, acabo me desintegrando (essencial e essência) até a pulverização total.” (TELLES, 1979, p. 182s).
Estava no 2º grau, hoje conhecido como ensino médio. Participei de um Concurso de Poesias e meu Mestre, Prof. Manuel Cardoso, o professor de língua portuguesa que me despertou para o estudo da poética, da lingüística, da semiótica. Tanto que fiz Letras na PUC, inspirada nele.
Um homem nordestino, baixinho, sempre elegante e perfumado, com um sorriso sempre pronto a elogiar e motivar seus alunos e a seriedade fraterna para nos corrigir, orientar para que pudéssemos acertar.
Bons tempos com lembranças doces!
Eu ganhei o concurso de poesias e ele me presenteou com este livro: As Meninas cujo trecho expus acima.
Um romance de Lygia Fagundes Telles, escrito em 1973 e premiado com o Prêmio Jabuti, em 1974.
Ele me disse:
“Melcina, querida bambina, leia este livro com atenção e
guarde-o sempre perto de você,
porque você – um dia – vai entender em profundidade o que nossa escritora fala sem dizer.
Eu fiz e faço isso. E, de tempos em tempos, é o livro revisito em leituras e aprendo novas lições.
Essa obra é ousada, o 3º romance de Lygia, escrito em plena ditadura militar no Brasil:
- Discute e relata explicitamente a barbaridade dos porões da ditadura enquanto esta ainda estava em vigor no país;
- Reproduz corajosamente, e pela primeira vez na ficção do Brasil, um depoimento de tortura de um preso político.
Por espanto, esse livro escapou da CENSURA, porque como a própria autora diz no documentário: “Lygia uma escritora brasileira” – produzido em 2017 pela TV Cultura. Clique para assistir.
São pouco mais de 300 páginas, de acompanhamento da jornada de 3 Mulheres-Marias, universitárias… A narrativa acontece em 1969, as três vivem no Pensionato Nossa Senhora de Fátima e dividem o mesmo quarto, cenário perfeito para terem seus destinos cruzados e tornarem-se melhores amigas e confidentes.
Como é um pensionato de universitárias… há o espectro do terror da ditadura militar brasileira rondando o local e sempre à espreita.
Daí à infiltração de maneira irreversível e direta nesse espaço e na vida de suas habitantes é uma questão de tempo.
Mas, quem são essAs Meninas?
- Lorena Vaz Leme: estudante de Direito.
Comportamento guiado – sobretudo – pelo ideal romântico de feminilidade;
- Lia de Melo Schultz: estudante de Ciências Sociais.
Subversiva militante de esquerda;
- Ana Clara Conceição: estudante de psicologia.
Absolutamente linda. Vive assombrada pelo traumas de abusos sexuais do passado e pelo presente dominado pelo uso de drogas.
É uma narrativa fluida, alternando as vozes das protagonistas, bem do jeito nosso de mulher conversar!
Do nosso feminino de descrever de modo íntimo os contratempos rotineiros e inesperados na vida das jovens, que vão de Meninas a Mulheres.
Questionando os tradicionais estereótipos que recaem sobre o sexo feminino. Somos levadas para dentro, aprofundando na complexidade e nas contradições naturais dessas personagens, dessas meninas, Mulheres-Marias, como se elas fossem pessoas reais, com vícios e virtudes.
Querida leitora, eu sempre me pergunto:
Será que não são reais?
Será que não vive em cada uma de nós, um pouco delas?
Essa é a grande dificuldade de acompanhá-las intimamente, assim como nos despedir de suas histórias.
O final deste buildungsroman é emblemático, na medida em que demonstra que as protagonistas deixaram de ser meninas para tornarem-se Mulheres com algo a mais.
Exceto exemplares, porque une em um só quadro luzes e sombras que selam sua formação.
Faço referência ao quadro homônimo de Diego Velázquez intitulado As Meninas. Clique e saiba mais.
Acontece que tanto as Meninas Velázquianas como as Meninas Lygianas apresentam a complexidade entre realidade e ilusão.
Sincronicidade que se faz presente, porque este livro é minha indicação de leitura para este mês de Abril. Busque-o em bibliotecas, Sebos, ou clique para comprar novinho!
Um livro escrito por mulher que fala sobre mulheres: seus conflitos, sonhos e identidade feminina que o tempo não acaba.
Pois bem, ontem, aos 98 anos, a Imortal Lygia Fagundes Telles tornou-se encantada. Adentrou o Reino do Encantamento e permanecerá VIVA em suas obras.
Recebi esta notícia com a certeza de que ela, Lygia, Mulher-Maria, cumpriu com sua missão no planeta Terra. Deixa seu LEGADO de reflexões, questionamentos e sensibilidade para todos os seus leitores.
Você já leu As Meninas?
Se sim, comente o que mais fez sentido para você.
Se não leu, fica a dica: leia.
Faça a sua vida valer a pena, doce Menina-Mulher-Maria.
Vamos Mariar. 💫
Um abraço fraterno de Maria para Maria.🌻
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